Análise Crítica dos Argumentos do Senador Collor contra o Projeto de Lei de Acesso à Informação Pública

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Publicado originalmente na Revista Crítica do Direito, Número 1, Volume 13.

Sua Excelência, o Senador Fernando Collor de Mello, escreveu artigo publicado em 18.06.2011 no caderno Tendências/Debates do jornal Folha de S. Paulo, intitulado “Acesso à informação é questão de Estado“. Como presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, Collor teve poder para interromper o processo legislativo que levaria o Projeto de Lei 41/2010 (PL) a ser votado em plenária no Senado Federal. Este Projeto de Lei pretende regulamentar o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal de 1988, e deverá tornar públicos, entre outros, todos os documentos absolutamente não-sigilosos mantidos em sigilo até hoje por pura ausência de Lei que regulamente esta questão.

Os argumentos defendidos pelo Senador são interessantes do ponto-de-vista político, por demonstrarem sua visão de mundo, mas muito precários de uma perspectiva lógica, porquanto insustentáveis quando confrontados com o texto atual do PL. Os parágrafos abaixo pretendem compor uma modesta análise crítica capaz de contribuir para o esclarecimento de alguns pontos que, no artigo do Senador Collor à Folha de S. Paulo, tornam nebuloso, confuso e invertido, aquilo que atualmente já está claro e é consistente o suficiente para ser referência internacional no tema: o PL 41/2010. Foi isso que já afirmou a Câmara dos Deputados, e três das quatro Comissões do Senado Federal que deveriam analisar o PL, sendo a única exceção aquela que o Senador Collor preside.

Collor afirma que o PL gera impacto danoso à (1) administração pública, à (2) segurança do Estado e à (3) segurança da sociedade brasileira. Estes três pilares invocados pelo Senador são de fato graves e nobres, mas “se dissolvem no ar” quando cotejados como argumentos de ataque ao texto do PL. É justamente porque o PL protege consistentemente, ao longo de toda sua redação, estes e outros pilares de um Estado que se pretenda republicano e democrático, mais coerente seria invocá-los como argumentos de defesa ao PL.

Será seguida a mesma numeração estabelecida pelo Senador no artigo a que aqui nos referimos:

Primeiro argumento

1. O Senador Collor destaca a importância de que o PL deve “resgatar a possibilidade de que alguns documentos, cuja divulgação ameace a segurança do Estado e da sociedade, tenham seu sigilo prorrogado por mais de uma vez“.

Esta importante missão já é cumprida pelo PL, segundo o qual estas informações sensíveis às quais o Senador refere-se, denominadas no contexto do PL como ‘ultrassecretas’, poderão ter prorrogado o “prazo de sigilo […] sempre por prazo determinado, enquanto o seu acesso ou divulgação puder ocasionar ameaça externa à soberania nacional ou à integridade do território nacional ou grave risco às relações internacionais do País“. (Cf. art. 35, § 1º, inciso III).

Segundo argumento

2. O Senador defende que se deve “retirar a obrigatoriedade de divulgação de informações na rede sem devida e prévia publicação no Diário Oficial“, como se em alguma passagem que seja o PL fizesse qualquer vinculação, explícita ou implicitamente, entre “divulgação de informações na rede” e “prévia publicação no Diário Oficial“. Na verdade, o PL nem sequer cita o Diário Oficial.

Vincular que documentos de dezenas ou milhares de páginas, ou mesmo que informações contidas em enormes tabelas de bases de dados, tenham sua divulgação na rede (por meio de sítios governamentais oficiais) vinculada à publicação no Diário Oficial, leva na prática tanto a um uso inadequado deste instrumento Oficial, quanto a um retrocesso na agilidade proporcionada pela Internet e diversas tecnologias de web semântica (como XML, RDF, OWL e SPARQL). Não se trata de tornar o Diário Oficial um grande depósito de conteúdo público, mas sim de criar canais oficiais adequados para disponibilizar documentos, informações e dados de natureza pública. (Vide Art. 4º, incisos I e II, para melhor compreensão sobre o que são considerados como informação e documento no contexto do PL.)

Terceiro argumento

3a. Collor defende, como se isto já não estivesse previsto no PL, que se deve “resgatar a hipótese do caráter confidencial de determinados documentos e informações, para dar mais flexibilidade ao agente público na classificação e evitar problemas com aqueles existentes e assim já denominados.

O conceito de informação sigilosa contido no inciso III do art. 4º contempla exatamente isto a que o Senador classifica como “caráter confidencial“: “III – informação sigilosa: aquela submetida temporariamente à restrição de acesso público em razão de suaimprescindibilidade para a segurança da sociedade e do Estado“. Esta restrição é reforçada pelo § 1º do art. 7º, o qual assegura que “o acesso à informação previsto no caput não compreende as informações referentes a projetos de pesquisa e desenvolvimento científicos ou tecnológicos cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado“. Neste sentido, portanto, o texto do PL já está em total concordância com os três pilares invocados pelo Senador Collor.

3b. O Senador argumenta ainda que “há de se considerar também os acordos internacionais em que consta essa classificação e cuja alteração demandaria novas tratativas“.

É certo que a Comissão Mista de Reavaliação de Informações deverá levar não apenas esta grave consideração em conta, como tantas outras as que forem necessárias. Certamente é vazio de sentido, entretanto, tentar-se prever no texto da Lei todos os critérios, como numchecklist, que deverão ser considerados pela dita Comissão. Cada caso concreto exigirá análises concretas, e é certo que os acordos internacionais com os quais o Senador preocupa-se deverão ser levados em consideração nos casos em que acordos internacionaisforem questões relevantes para a classificação de documentos de natureza diplomática. Isto é algo já contemplado pelo PL, e a classificação ‘ultrassecreta’ está prevista para casos como este, caso a autoridade classificadora assim considere adequado. Há um capítulo no PL que só trata desta questão: “Capítulo IV – Das Restrições de Acesso à Informação“.

Quarto argumento

4. O Senador Collor cita uma lógica da classificação da natureza das informações, como se houvesse uma relação lógica entre o que ele afirma ser necessário: “inverter a lógica da classificação da natureza das informações. O seu conteúdo é o elemento decisivo para determinar o grau de sigilo, e não o nível hierárquico do responsável pela classificação“.

Collor parece ter compreendido que, segundo o PL, o “elemento decisivo para determinar o grau de sigilo [das informações]” é “o nível hierárquico do responsável pela classificação” (o que de fato seria ilógico), e não justa e precisamente “o seu conteúdo [das informações]” (o que de fato é o razoável e, felizmente, é o caso do PL). Fica aqui lançado o desafio para que se aponte uma única linha do PL aonde haja qualquer referência a esta “inversão lógica” sugerida pelo Senador. É certo que o PL descreve muito claramente a conexão lógica (esta sim!) entre o conteúdo das informações e seu respectivo grau de sigilo.

Para maior compreensão disto, vide o art. 24: “a informação em poder dos órgãos e entidades públicas, observado o seu teor e em razão de sua imprescindibilidade à segurança da sociedade ou do Estado, poderá ser classificada como ultrassecreta, secreta ou reservada“. Teor e conteúdo são sinônimos. Segundo o PL, é justamente o teor, sinônimo de conteúdo, que deve ser observado ou, parafraseando Collor, que é o elemento decisivo para a classificação das informações. Conforme o texto do PL, o nível hierárquico da autoridade classificadora não é a causa do critério da classificação, mas sim a consequência de seu conteúdo, ao contrário do que sugere o Senador Collor.

O PL é bastante claro quanto ao fluxo de classificação: primeiro uma autoridade classificadora (vide art. 29) classifica o nível de sigilo de uma informação; depois, se a informação for classificada como sigilosa, a partir da explicitação do nível de sigilo, a informação é encaminhada para a Comissão Mista de Reavaliação de Informações para que seja reavaliada. O § 3º do art. 27 não deixa dúvidas quanto a isto: “a autoridade ou outro agente público que classificar informação como ultrassecreta deverá encaminhar a decisão de que trata o art. 28 [informação em qualquer grau de sigilo] à Comissão Mista de Reavaliação de Informações […]“.

Quinto argumento

5a. O Senador afirma que “o texto original, ao criar a Comissão Mista de Reavaliação de Informações, não é preciso quanto à composição“. Esta afirmação ignora completamente o que está escrito no § 4º do art. 35 do PL, segundo o qual “regulamento disporá sobre a composição, organização e funcionamento da Comissão Mista de Reavaliação de Informações, observadas as disposições desta Lei“.

Em outras palavras, isto significa dizer que o PL prevê que deverá haver uma regulamentação legal específica que disponha sobre a composição da Comissão Mista de Reavaliação de Informações. Qualquer legislador deve estar consciente de que uma das boas práticas legislativas é determinar-se que Comissões governamentais sejam reguladas por dispositivo legal hierarquicamente inferior a Lei Complementar. Um bom motivo para isto é dar maior celeridade à adaptação entre o regulamento e as necessidades concretas da respectiva Comissão.

5b. Além disso, o Senador Collor afirma, relativamente a esta Comissão, ser da opinião de que “sua [da Comissão] competência deve ser a de uma instância consultiva, e não decisória, de modo a evitar que a própria presidenta da República torne-se subordinada a ela“. Ainda que soe como uma afirmação transcendente, esta é apenas a opinião do próprio Senador. Se uma Comissão “composta por Ministros de Estado e por representantes dos Poderes Legislativo e Judiciário, indicados pelos respectivos presidentes” (Cf. art. 35), não tiver autonomia para decidir sobre o nível de sigilo das informações públicas a ela encaminhadas como sigilosas, então ela perderia sua razão de ser.

O desejo do Senador Collor revela uma possível intenção de que a Presidenta da República deva receber uma nova atribuição legal: a de analisar todos os documentos classificados previamente como sigilosos. Uma consequência desta defesa de tese do Senador Collor seria permitir que a Presidenta da República pudesse interferir discricionariamente na classificação de certos documentos específicos, conforme sua própria vontade ou interesse. Esta Comissão, segundo o PL, deve ser composta por membros dos três Poderes, “indicados pelos respectivos presidentes” (Cf. art. 35). Trata-se de indicação política: são pessoas da confiança dos dirigentes dos três Poderes, e não apenas do Poder Executivo. Num Estado que se pretende republicano e democrático, não há qualquer sentido em desequilibrar-se esta harmonia pretendida pelo PL e, ao invés disso, conceder ao Poder Executivo soberania na classificação de documentos sigilosos.

Imagine-se uma Presidência da República ocupada por alguém envolvido com grandes esquemas de corrupção (desperdício ativo), ou então completamente descompromissado com planejamento e com metas republicanas (desperdício passivo). Há algum sentido em conceder a esta pessoa poder soberano para decidir pela ocultação de informações públicas capazes de comprovar estes desperdícios de recursos públicos, por exemplo? Pela tese do Senador Collor, ao Legislativo e ao Judiciário deveria caber o papel coadjuvante de Poderes meramente consultivos. Acontece que a defesa de uma Comissão meramente consultiva, defendida pelo Senador Collor, fere o princípio do equilíbrio entre os três Poderes.

Sexto argumento

6. Collor defende que se deve “manter secretas as informações referentes ao presidente da República pelo prazo de 15 anos, tornando desnecessário vincular o acesso às informações de seu governo ao término do mandato“. Duas questões surgem daí. A primeira, mais essencial, busca saber qual o sentido de manterem-se em segredo informações referentes justamente à figura pública mais importante de um país: o Presidente da República.

A segunda, mas não menos importante, pretende compreender qual a natureza das “informações referentes ao presidente da República” que deveriam ser mantidas em segredo “pelo prazo de 15 anos“. Já não bastam as informações sigilosas que se enquadrem como ligadas à “segurança da sociedade e do Estado” (Cf. art. 4º, inciso III; e Cf. art. 23), ou as capazes de “pôr em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares” (Cf. art. 23, inciso VII)? O Senador Collor parece defender que absolutamente todas as “informações referentes ao presidente da República” deveriam ser afastadas do escrutínio público “pelo prazo de 15 anos“, independentemente de se de fato colocam ou não a sociedade e o Estado em algum risco.

Considerações finais

Finalmente, Sua Excelência afirma que, “nesse ponto, cabe esclarecer: todas as informações relativas ao meu governo já estão inteiramente disponíveis“. Ora, mas é justamente porque a atual realidade em nosso Brasil é o contrário do que afirma o Senador, que se faz necessária uma Lei que regulamente o acesso à informação pública. Se não fosse assim, todas as informações públicas, inclusive as relativas ao governo Collor, já estariam disponíveis automaticamente, e é justamente porque assim não é, que o inciso I do art. 3º prevê inovadoramente a “observância da publicidade como preceito geral e o sigilo como exceção“, em total “conformidade com os princípios básicos da administração pública” (art. 3º). Esta inovação supera o princípio do sigilo como preceito geral, e a publicidade como exceção, que ainda norteiam a lei e a prática da administração pública no Brasil.

Prova desta prática perversa é que dos 27 Estatutos dos Servidores Civis brasileiros, 22 possuem no título de deveres a menção do sigilo enquanto dever do servidor, e todos os 27 prevêem punições para os servidores que revelem fato ou informação de caráter sigiloso conhecidos em razão do cargo. Num contexto como o brasileiro, em que o conceito de “informação de caráter sigiloso” até hoje não está regulamentado, isto significa dizer que toda a informação pública é sigilosa por princípio, e que sua revelação pode acarretar punições para os servidores públicos “envolvidos”, inclusive, podendo levá-los à demissão a bem do serviço público, uma das punições administrativas mais severas que pode ser aplicada a um servidor público.

É justamente porque o “acesso à informação pública é questão de Estado“, parafraseando o Senador Collor, e porque os brasileiros pretendemos construir um Estado que ainda tem muito por fazer para consolidar-se como republicano e democrático de fato, que a aprovação do PL 41/2010 deve ser considerada, literalmente, em regime de urgência. Cada dia que se passa sem termos esta regulamentação é um dia a menos em nosso caminhar rumo a um Brasil mais republicano, democrático e transparente.

Leandro Salvador é cientista da computação, mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, Especialista em Políticas Públicas no Governo do Estado de São Paulo, diretor da Associação dos Especialistas em Políticas Públicas do Estado de São Paulo, membro da comunidade Transparência Hacker e integrante do movimento Brasil Aberto: informação pública é um direito nosso.