‘Como acessar informação se o governo não a documenta?’

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“Para mim é muito excitante falar sobre liberdade de informação e dados abertos, mas se queremos essas coisas nós realmente temos que gerir bem os dados”, alerta Anne Thurston, diretora do International Records Management Trust (IRMT), entidade sem fins lucrativos baseada na Inglaterra cujo objetivo é desenvolver estratégias em gestão documental, e que há 23 dá apoio para que os governos manejem bem seus dados.

Com mais de 30 anos de experiência na área, Anne defende, nessa entrevista ao Públicos, que os arquivos nacionais liderem as políticas de gestão documental. “Em muitos países a sanção da lei de acesso à informação e também o desenvolvimento do governo eletrônico tendem a enfraquecer o papel dos arquivos nacionais. Novos órgãos estão sendo criados, mas eles estão fazendo coisas que deveriam estar sendo feitas pelos arquivos nacionais”, argumenta.

Ela avalia que o Brasil precisa de uma atualização da legislação que trata do registro e do armazenamento de dados. “Na maioria dos países as leis de arquivos foram escritas há muito tempo. Elas devem ser modernizadas”. A diretora do IRTM alerta para a crucialidade do registro de dados governamentais. “O que significa liberdade de informação, se o governo não documenta as coisas?”.

(Fernando Gallo)

A sra. escreveu, em um paper: “Atualmente, legislações sobre liberdade de informação tendem a ser adotadas e iniciativas em dados abertos tendem a ser planejadas sob a presunção de que bons registros existem e que a informação pode ser provida facilmente a partir de registros confiáveis e bem armazenados. Muito frequentemente esse não é o caso”. Por que isso acontece? A Lei de Acesso à Informação brasileira é muito detalhada no que diz respeito à liberação de documentos, mas muito breve, para não dizer nula, no que se refere ao registro e ao armazenamento dos dados.

Eu sei. Estamos preocupados com isso. Na Europa e nos Estados Unidos os sistemas de arquivamento de dados estão aí há tanto tempo, todo mundo presume que os dados vão estar lá. E quando as pessoas tratam de lei de acesso ou de dados abertos não estão pensando se os dados estão armazenados. Há uma necessidade de criar uma medição do grau de confiabilidade do sistema de registros. Os governos modernos têm de gerir adequadamente os dados como parte de seus programas de eficiência e accountability.

A sra. disse que ainda não se conseguiu medir a confiabilidade do sistema de gestão documental…

Sim. A lei de acesso dá poderes adequados ao arquivo nacional para liderar essa questão? Há uma política robusta sobre isso? Os procedimentos estão todos corretos para garantir que os dados sejam bem geridos? Há padrões? O governo observa os padrões internacionais? Nem os reconhecem! Em um ambiente eletrônico isso é muito crítico. Ok, é fácil criar arquivos digitais. Mas você precisa ter boa gestão. Temos que criar uma forma de medir se todos os elementos necessários a uma boa gestão documental estão presentes.

Qual é a importância de uma política efetiva de gestão documental?

Caso contrário, essas coisas tendem a se tornar práticas ad hoc. Há padrões internacionais que devem estar presentes. Todos precisam saber quais são as suas responsabilidades em gerir os dados. Há que haver um nível adequado de expertise no país. Em muitos países essas questões ainda não são levadas a sério.

Quais são os principais elementos de uma política efetiva de gestão documental?

Ela deve definir quais são as responsabilidades das instituições, daqueles que criam os dados, dos arquivos nacionais. Acredito que os arquivos nacionais devem ser os corpos que definem os padrões. A menos que essas coisas estejam definidas, a menos que o governo se comprometa a ter os dados como evidência de sua accountability e sua eficiência, e como evidência que permita às pessoas confiar no que o governo está fazendo… se você deixar isso ao acaso, será difícil ter os padrões de alta qualidade que você precisa para ter uma política eficiente.

A sra. diz que os arquivos nacionais deveriam ter um papel muito importante em gestão documental. Por quê?

Os arquivos nacionais tendem a ser associados com dados históricos. Temos que fazer uma transição para um ponto em que os arquivos públicos sejam um corpo com um status e responsabilidade pelos dados públicos. Apoiamos e endossamos que eles se tornem as autoridades em gestão documental. Os planejadores ainda não veem isso. Eles acham que tem a ver com informatização, com simplesmente elaborar leis e regulamentações. Mas, verdadeiramente, sem toda a questão da gestão documental não funciona.

O que o Arquivo Nacional brasileiro deveria estar fazendo para contribuir com o bom funcionamento da Lei de Acesso? Eles parecem ter um papel tímido.

Talvez haja complicações políticas. Talvez a Controladoria-Geral da União não tenha envolvido o Arquivo Nacional tanto quanto deveria.

Que tipos de tarefa o Arquivo Nacional deveria liderar?

Eles deveriam monitorar os padrões internacionais e ver como isso se aplica ao governo. Deveriam estabelecer padrões. Deveriam assegurar que haja capacidade adequada para gerir documentos no governo. Deveriam trabalhar em parceria para assegurar que os padrões e práticas de captura e preservação de arquivos digitais sejam parte do plano de governo eletrônico. Deveriam desenvolver ou ao menos supervisionar o desenvolvimento de depositórios digitais bem controlados. Os padrões europeus são muito importantes.

A sra. já disse que os arquivos nacionais não deveriam zelar apenas pelas informações relativas ao passado.

Os arquivos nacionais em alguns países simplesmente recebem passivamente as informações de órgãos dos governos. Era desse jeito que as coisas aconteciam no passado. Hoje muitos governos, como o americano e o britânico, têm programas muito ativos de gestão documental dentro dos arquivos nacionais. Eles ajudam os órgãos governamentais a saber o que fazer em termos de sistemas, padrões e práticas. Eles ajudam os órgãos a assumir a responsabilidade de manter o governo sob escrutínio. Como estão criando os dados? Eles têm apoio suficiente? Eles têm políticas e práticas claras o suficiente? Eles têm equipe capacitada? Afinal, quem vai gerir isso se o arquivo nacional não fizer o seu papel? Não podemos ir pelos caminhos velhos e esperar as coisas chegarem aos arquivos.

A sra. escreveu também sobre a importância de dar publicidade não apenas ao conteúdo, mas também ao contexto e à estrutura em que eles foram criados.

São os metadados. Você precisa poder capturar bons metadados sobre os dados, de maneira a saber que eles são dignos de confiança. São eles que permitem confiar na informação e geri-la bem. Se isso não for feito sistematicamente, você simplesmente não terá o nível de controle que você precisa. Na Noruega eles publicam os metadados de todos os dados que são criados todos os dias. O cidadão pode ver online os metadados e determinar quais dados ele quer acessar.

A sra. pode dar um exemplo?

Os metadados podem dizer que se trata de informação sobre serviços médicos, que foi criada no dia tal, te dizem quem criou aqueles dados, onde e como. E você pode ir online e pedir à agência criadora uma cópia do documento. Se eles não te entregam em três dias, a agência arruma problemas para ela. Para mim é muito excitante falar sobre liberdade de informação e dados abertos, mas se queremos essas coisas nós realmente temos que gerir bem os dados.

Nós raramente sabemos como os governos tomam suas decisões no Brasil porque eles não registram os processos decisórios, suas reuniões, etc. Quão importante é esse registro?

Um governo é um servo de seu povo. Está lá para representar o povo. É muito excitante que o Brasil esteja liderando a Open Government Partnership e tenha sancionado a Lei de Acesso à Informação. É absolutamente maravilhoso. Mas isso traz uma nova responsabilidade. Se o sistema de gestão documental funciona bem, deve trazer evidências legais de tudo o que o governo está fazendo. Todo o trabalho do governo deve estar documentado. No passado isso era mantido secreto. As pessoas não sabiam quais eram as decisões e não podiam escrutinar os governos. Agora temos uma obrigação muito maior. A pessoas têm expectativas muito altas de que elas deveriam saber o que o governo decidiu e como. O que governo aberto significa? E o que significa liberdade de informação, se o governo não documenta as coisas?

A Lei de Acesso à Informação só menciona a palavra “arquivo” uma vez. Posso presumir que precisamos de uma legislação complementar sobre gestão documental?

Sim, sim! Definitivamente. Na maioria dos países as leis de arquivos foram escritas há muito tempo. Não vi a lei de arquivos brasileira, mas vi muitas leis de arquivos. Acho que elas devem ser modernizadas. Notei que em muitos países a sanção da lei de acesso à informação e também o desenvolvimento do governo eletrônico tendem a enfraquecer o papel dos arquivos nacionais. Novas órgãos estão sendo criados, mas eles estão fazendo coisas que deveriam estar sendo feitas pelos arquivos nacionais. Você não pode ter órgãos diferentes dividindo a responsabilidade pelos dados. Você tem que ter uma central que se responsabilize por isso.

Muitas pessoas tendem a pensar no mundo digital como uma espécie de panaceia da gestão documental, mas a sra. parece ser um pouco cética quanto a isso. A sra. escreveu: “registros e dados digitais são extremamente frágeis, e novos conjuntos de habilidades e marcos regulatórios são necessários para que eles sejam geridos adequadamente ao longo do tempo”. De onde vem seu ceticismo?

O mundo digital é uma realidade e não há como escapar disso. Mas acho que, a menos que a gente crie funções bastante precisas nos sistemas eletrônicos, eles terão alguma funcionalidade para capturar dados, mas não o nível de controle de que precisamos. Há duas questões muito importantes. Uma é assegurar que os dados sejam bem capturados, assim como os metadados, e que estejam muito bem descritos. A outra é assegurar que haja equipamentos para proteger os dados com o passar dos tempos. Caso contrário, é muito fácil perder os dados.

Quais países são exemplos em boa gestão documental?

Os países nos quais vemos que os dados e os arquivos são muito bem geridos em relação ao acesso à informação são Suécia e Noruega. Eles entendem a relação entre boa gestão documental e o acesso cidadão à informação. Eu admiro os governos abertos, mas estou preocupada que, em muitos casos, os líderes internacionais e os órgãos governamentais não estão reconhecendo que bons dados vem de bons registros, e que os dados, como os registros, têm de ser mantidos ao longo do tempo.

Fonte: O Estado de S. Paulo / Públicos
Data: 06.ago.2012