Carta aberta da Associação dos Trabalhadores da Secretaria de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo — ATDSESP
O que as duas fotos abaixo têm em comum?
Parece que nada, não é mesmo? Em uma, temos uma chef renomada elaborando um prato numa cozinha organizada para a produção de uma filmagem. Na outra, uma fila de pessoas sem comida precisando recorrer a cestas básicas para não passarem (mais) fome.
Mas elas têm algo em comum, sim: a chef de cozinha está ensinando para pessoas — como estas da fila — algumas técnicas de preparação de pratos de comida com os produtos da cesta básica distribuída pelo Governo do Estado de São Paulo para pessoas em extrema vulnerabilidade.
Essas duas fotos desenham-se como faces de uma mesma moeda: o problema da fome, e o oportunismo sobre a fome. Na primeira imagem, a Secretária de Desenvolvimento Social do Governo do Estado de São Paulo, Célia Parnes, atua junto a uma chef de cozinha de renome internacional, convidada para preparar pratos com os alimentos entregues à população pobre, que supostamente sobrevive com R$ 89 mensais per capita. Poderia ser apenas uma questão de boa intenção, de bondade ou algum senso comum do tipo. Contudo, quando analisamos criticamente ações públicas praticadas em contextos de sofrimento humano, não podemos nos dar o privilégio da ingenuidade.
Todas as políticas públicas e iniciativas desenvolvidas dentro do Estado podem ser parte de uma política coerente. Para isso, devem estar alinhadas ao plano de governo escolhido democraticamente nas urnas e a planos setoriais elaborados por especialistas e cidadãos engajados que buscam enfrentar os problemas públicos de uma maneira estruturada, organizada e republicana. Contudo, podem ser apenas parte de uma campanha publicitária projetada para ser utilizada como mero instrumento de marketing político-eleitoral, ou seja, fazendo uso privado de recursos públicos.
Existem alguns filtros que podemos usar para diferenciar as políticas republicanas, estruturadas com o objetivo de ter efetividade e impacto suficientes para mudar (para melhor) a realidade social, das peças de marketing político-eleitoral (muitas vezes embaladas em “projetos-piloto”). Três importantes filtros nesse sentido são o impacto, a replicabilidade e a perenidade da política pública.
Em linhas bem gerais, três perguntas que podemos nos fazer para contemplar tais filtros são as seguintes:
- Essa ação mudará significativamente (para melhor) a vida de uma alta proporção da população potencial (público-alvo)?
- Ela é replicável, ou seja, poderá ser feita em larga escala (haverá dinheiro suficiente para isso, por ex.)?
- Essa ação resolverá ou, pelo menos, diminuirá o problema que pretende enfrentar de maneira perene no tempo (ou seja, terá impacto positivo para o futuro)?
Caso a resposta para quaisquer dessas questões seja “não”, então, infelizmente, há fortes indícios de ser apenas uma peça de marketing vestida com roupagem de política pública. Um outro cenário possível é o de que se trata apenas de uma política mal desenhada, possivelmente como consequência da baixa capacidade de planejamento e realização de órgãos públicos sabotados por sucessivos governos anti-Estado. Um terceiro cenário, ainda, é o de tratar-se de uma consequência de “ideias geniais” surgidas na cabeça do primeiro escalão do órgão.
Uma boa imagem que representa o último cenário é aquela do coelho que surge da cartola do mágico: há incontáveis políticas públicas que nascem — e depois morrem! –, como um truque de mágica tirado da cartola do mágico. Nessa analogia, é claro, quem cumpre o papel de mágico com “ideias geniais tiradas da cartola” é o político, o “gestor”. As políticas “tiradas da cartola” podem ter impacto social pífio, mas são ótimas peças de marketing que duram apenas o tempo necessário para fazer a propaganda. Depois de servirem ao propósito publicitário elas simplesmente morrem. Desaparecem no ar.
Voltemos à situação trazida pelas fotos.
O fato de o Estado garantir alimentos para cidadãos passando fome deveria ser, sem dúvida, a política pública mais urgente do mundo. Mas sabemos que, mesmo no curto prazo, há alternativas muito melhores do que a entrega de cestas básicas. Um bom exemplo é o repasse de créditos diretamente às famílias para que elas mesmas possam escolher seus alimentos, com mais liberdade e dignidade, além de movimentar a economia local.
A alegação de que não há recursos para isso pode ser resolvida, por exemplo, com a redução dos R$ 40 Bilhões por ano dados na forma de benefícios tributários a proprietários de empresas lucrativas. Outra vastíssima fonte de recursos disponível é o aumento dos impostos cobrados sobre a renda e o patrimônio dos ricos.
Não é demais um importante aparte para nos lembrarmos que os ricos acumulam recursos desproporcionalmente muito superiores ao trabalho físico e intelectual que realizaram ao longo de suas vidas. A imensa riqueza herdada e acumulada por pouquíssimas famílias, portanto, é um privilégio, não é mérito. Mas voltemos.
Entregar cestas básicas é uma solução imediata, urgente e pontual para o problema da fome. Identificada e tratada como um problema que precisa ser superado com prioridade máxima, a fome deve ser enfrentada com cesta básica, sim. Devemos considerar, contudo, que se ainda estamos na situação de termos que entregar cestas básicas aos nossos concidadãos, temos que humildemente admitir que nosso atual modelo de sociedade está fracassando.
Não estamos em guerra. O Brasil é um país abundante em recursos naturais. Não fomos atingidos por um meteoro. São Paulo é o estado mais rico do país. Faz algum sentido pessoas passarem fome aqui? Que faremos, vamos articular um plano bem estruturado para resolvermos definitivamente esse problema, ou distribuir cestas básicas é o melhor que conseguimos?
Qual é o sentido do governo do Estado mais rico do Brasil entregar uma ou duas cestas básicas para pouco mais de 1 milhão de famílias? A pandemia da Covid-19 começou em março/2020. São pelo menos seis meses de crise. Uma cesta básica resolve qual problema para uma família que esteja desesperada? Por quanto tempo?
Por favor, que não se venha com a resposta fácil, a carta super trunfo do “não tem dinheiro“. Tem dinheiro, sim, senhoras e senhores! Trata-se de uma questão de prioridades sobre o orçamento público. Trata-se, portanto, de Política, de interesses em conflito.
Deve ser evidente que essa ação não está coordenada com outras ações coerentes projetadas para superar a situação de fome extrema no Estado de São Paulo. Contudo, o objetivo mais aparente dessa medida não é combater a fome, mas, infelizmente, servir como peça publicitária. A produção do e-book feita nesse contexto é um elemento que demonstra a crítica aqui colocada.
A ação protagonizada pela Secretária de Desenvolvimento Social, Célia Parnes, parte da “ideia genial” de fazer um livro eletrônico para pessoas pobres e miseráveis com receitas usando itens da cesta básica. Elas não têm comida! Terão acesso à Internet? Será que têm um smartphone?
Protagonizar uma peça publicitária formatada para TV não ataca rigorosamente nenhum problema da Assistência Social. Não se coordena com nenhum plano ou política de desenvolvimento social. Não tem impacto algum. Não tem nenhuma efetividade. Entretanto, serve bem ao propósito de propaganda & marketing da pessoa física que protagonizou a peça junto com a chef de cozinha, ou seja, a própria Secretária.
Parece uma versão repaginada da célebre frase atribuída a Maria Antonieta, “se não têm pão, que comam brioches”. Se não têm carne, que comam sardinha gourmet.
Ingenuidades à parte, pois muitos dirão “qual o problema? Ela tem boas intenções…”. O que se espera do Estado é, de fato, a solução de problemas. A Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social deveria ser o principal lugar a saber das dificuldades sociais e da realidade concreta da população. As famílias estão sem emprego, sem salário, sem gás em casa. Receberam uma cesta básica e não sabem se receberão outra. Moram em lugares insalubres, favelas, sem saneamento. Quando têm acesso à Internet, a conexão é ruim. Celular de qual geração? Mãe/pai chefe de família com mil preocupações e problemas dentro e fora de casa. A lista de problemas a serem enfrentados é extensa, porém é concreta, é conhecida, é enfrentável. Nesse contexto todo, qual a pertinência da produção de um livro eletrônico de receitas às famílias que receberam desta Secretaria estadual uma ou duas — ou quiçá 3 — cestas de alimentos ao longo dos meses de pandemia?
É grave. Pois o que está sob a responsabilidade do Estado é o uso dos recursos públicos gerados pelos cidadãos para atender a necessidades prioritárias da população. Toda e qualquer ação promovida por uma Secretaria de Estado utiliza recursos humanos, financeiros, materiais, tempo. São usados recursos públicos! Ou seja, tudo o que é necessário para realizar-se qualquer ação estatal é público.
Para produzir o e-book e a produção televisiva para divulgá-lo foram utilizados carro, motorista, combustível, energia, máscara, equipe, etc. O que se espera é que o Estado utilize os nossos recursos públicos da melhor forma possível e de acordo com reais necessidades da população. Por isso, nos perguntamos: é moral uma ação com base na fome de famílias pobres para produzir um simpático programa de TV? Dados todos os problemas sobre os quais o Estado deveria atuando e as milhares de mortes em decorrência da pandemia, é este um momento adequado para a Secretária de Estado incorporar a “Ana Maria Braga”?
Será que nossos representantes políticos e seus altos escalões de “gestores” sabem que as milhões de famílias que recorrem às cestas básicas o fazem por extrema necessidade, urgência, e não por acharem gracioso receber das mãos de gente bonita e bem-alimentada uma caixa com alimentos?
Essa ação parece uma versão gourmetizada das ações de caridade, nas quais quem ganha mais não é quem recebe algumas migalhas (que pode ser qualquer pessoa, um anônimo na massa de necessitados), mas sim aquele que dá. Aquele que faz caridade orientada ao marketing pessoal é quem realmente ganha com as tantas publicações geradas, likes, views e, mais que isso, notoriedade. É uma fórmula tão velha política, tão old fashioned, super manjada, para a construção da imagem de “boa pessoa” usada por políticos fisiológicos e oportunistas.
Quem ganha realmente com o lançamento de um e-book com uma chef de cozinha internacional para um programa pontual que já praticamente acabou baseado em uma cesta que talvez já nem exista na prateleira da família? A população — e sabe-se lá quem vai acessar — ou quem promove a ação?
Em tempo, emoldura graciosamente o quadro aqui desenhado o fato de que a chef em tela, inclusive, não acredita no desemprego e defende que “é só a pessoa buscar que ela acha”.
Num país onde é necessário dar comida a milhões de famílias devido à sua falta de emprego e renda, a última coisa que deveria ter espaço é o marketing oportunista. Deveríamos estar todos indignados com esta realidade ao mesmo tempo brutal e desnecessária. Então, não se trata de boas intenções. Trata-se de ter noção, dignidade, bom senso e responsabilidade com a coisa pública!
São Paulo, __ de outubro de 2020.
Associação dos Trabalhadores da Secretaria de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo — ATDSESP
Fontes: