Recentemente, os funcionários públicos tornaram-se alvo de paixões em todo o Brasil após o pronunciamento do ex-presidente Lula em que este teceu críticas aos mesmos. É fato que o funcionalismo público é visto, muitas vezes, como uma casta de ricos privilegiados que receberia salários altíssimos para prestar um serviço público ruim. A realidade, porém, é bem mais complexa, e não são poucos os problemas que levam à baixa qualidade do serviço público e à fraca capacidade de planejamento, gestão e realização de políticas públicas. Neste artigo elencaremos alguns desses problemas estruturais, tomando como exemplo o Estado de São Paulo:
1. A relação de valores entre a maior e a menor remuneração dos servidores públicos estaduais, prevista na versão original da Constituição Federal de 1988 (Art. 37, XI), jamais chegou perto de ser fixada:
XI – a lei fixará o limite máximo e a relação de valores entre a maior e a menor remuneração dos servidores públicos, observados, como limites máximos e no âmbito dos respectivos poderes, os valores percebidos como remuneração, em espécie, a qualquer título, por membros do Congresso Nacional, Ministros de Estado e Ministros do Supremo Tribunal Federal e seus correspondentes nos Estados, no Distrito Federal e nos Territórios, e, nos Municípios, os valores percebidos como remuneração, em espécie, pelo Prefeito;
Atualmente, no Estado de São Paulo, esta relação gira em torno de 12,5 vezes. Um Oficial Administrativo recebeu, em 2015, aproximadamente R$ 1.768,92 líquidos por mês, enquanto um Procurador do Estado recebeu R$ 22.092,90, ou seja, aquele recebeu 8% do que recebeu este.
O salário do Governador é — ou deveria ser — o teto constitucional da Administração Direta do Governo Estadual.
2. Funções técnicas e administrativas deveriam ser exercidas exclusivamente por servidores públicos concursados. Pelo menos foi isso o que estabeleceu a Constituição Federal de 1988 (Art. 37, V):
V – as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento;
Apesar disso, a Administração Direta (secretarias) do Governo do Estado de São Paulo possui aproximadamente 3.352 cargos em comissão enquadrados na categoria “Assessoramento”, dos quais apenas 170 são, de fato, cargos desta natureza, denominados como “Assessor Técnico de Gabinete”, ou ATG. Isto significa que 3.182 cargos denominados como de “Assistente” — que realizam funções de natureza técnica ou administrativa — estão em desacordo com o art. 37, V da CF88, pois não são providos por concurso público, mas por livre nomeação do Governador do Estado de SP.
Confira abaixo a tabela com os cargos em comissão destinados formalmente para exercer atribuições de “Assessoramento” pelo Governo do Estado de São Paulo na Lei Complementar nº 1.080/2008:
Natureza do Cargo | Natureza da Função | Denominação do Cargo em Comissão | Denominações do Cargo em Comissão (anteriores à LC 1.080/2008) | Nível de Escolaridade | Experiência Mínima | Ref. | Salário Inicial |
Comissão | Assessoramento | Assessor Técnico da Administração Superior | Superior | 6 | 16 | R$ 8.230,03 | |
Comissão | Assessoramento | Assessor Técnico Chefe | Superior | 6 | 15 | R$ 8.664,66 | |
Comissão | Assessoramento | Assessor Técnico de Gabinete | Superior | 5 | 15 | R$ 8.664,66 | |
Comissão | Técnica | Assistente Técnico VI | Superior | 5 | 13 | R$ 5.570,77 | |
Comissão | Técnica | Assistente Técnico V | Assistente Técnico da Administração Pública | Superior | 4 | 12 | R$ 5.054,05 |
Comissão | Técnica | Assistente Técnico IV | Assistente de Planejamento Agropecuário III, Assistente de Planejamento e Controle III, Assistente de Planejamento e Gestão de Recursos Humanos, Assistente de Planejamento e Gestão III, Assistente Técnico de Direção III, Assessor Técnico da Junta Comercial, Assistente Técnico para Modernização Administrativa, Chefe de Escritório do Governo | Superior | 3 | 11 | R$ 4.458,15 |
Comissão | Técnica | Assistente Técnico III | Assistente de Planejamento Agropecuário II, Assistente de Planejamento e Controle II, Assistente de Planejamento e Gestão II, Assistente Técnico de Direção II, Assistente Técnico de Recursos Humanos II | Superior | 2 | 9 | R$ 3.675,00 |
Comissão | Técnica | Assistente Técnico II | Assistente de Planejamento Agropecuário I, Assistente de Planejamento e Controle I, Assistente de Planejamento e Gestão I, Assistente de Planejamento Educacional, Assistente Técnico de Direção I, Assistente Técnico de Recursos Humanos I | Superior | 1 | 7 | R$ 3.047,00 |
Comissão | Técnica | Assistente Técnico I | Analista de Planejamento e Gestão, Analista de Planejamento Educacional, Analista de Recursos Humanos, Analista para Modernização Administrativa, Analista para Transportes, Assistente Técnico de Ensino | Superior | 0 | 4 | R$ 2.474,64 |
Comissão | Técnica | Assistente Técnico de Gabinete III | Superior | 5 | 11 | R$ 4.903,15 | |
Comissão | Técnica | Assistente Técnico de Gabinete II | Superior | 3 | 9 | R$ 4.120,00 | |
Comissão | Técnica | Assistente Técnico de Gabinete I | Superior | 1 | 7 | R$ 3.388,00 | |
Comissão | Técnica | Assistente Técnico de Defesa Agropecuária III | Superior | 4 | 11 | R$ 3.258,15 | |
Comissão | Técnica | Assistente Técnico de Defesa Agropecuária II | Superior | 3 | 9 | R$ 2.675,00 | |
Comissão | Técnica | Assistente Técnico de Defesa Agropecuária I | Superior | 2 | 7 | R$ 2.247,00 | |
Comissão | Técnica | Assessor de Ouvidoria | Superior | 5 | 13 | R$ 6.002,77 | |
Comissão | Técnica | Assistente Técnico da Administração Superior | Superior | 5 | 14 | R$ 6.401,40 | |
Comissão | Técnica | Assistente Técnico de Coordenador | Superior | 5 | 13 | R$ 5.570,77 | |
Comissão | Técnica | Assistente Técnico Especializado em Defesa | Superior | 5 | 13 | R$ 3.970,77 | |
Comissão | Administrativa | Assistente de Ouvidoria | Superior | 3 | 9 | R$ 4.320,00 | |
Comissão | Administrativa | Assistente de Gabinete II | Oficial de Gabinete | Médio | 0 | 3 | R$ 2.224,00 |
Comissão | Administrativa | Assistente de Gabinete I | Auxiliar de Gabinete, Auxiliar de Secretário Particular | Médio | 0 | 1 | R$ 1.768,40 |
Comissão | Administrativa | Assistente II | Assistente Administrativo de Ensino | Médio | 0 | 2 | R$ 1.760,46 |
Comissão | Administrativa | Assistente I | Assistente, Controlador de Programação Orçamentária, Secretário | Médio | 0 | 1 | R$ 1.353,95 |
3. A estrutura funcional do Estado de São Paulo possui aproximadamente 7.872 cargos em comissão de direção e chefia (“cargos de comando”). Ao contrário do que acontece com os 3.182 cargos que, apesar de serem de natureza técnica e administrativa, foram criados como cargos em comissão de livre nomeação e exoneração pelo Governador, os 7.872 cargos de direção e chefia do Governo do Estado de São Paulo estão em conformidade com a Constituição Federal. Ao todo são aproximadamente 11.054 cargos em comissão. Imagine um organograma com 7.872 “caixinhas” dispostas em 12 níveis hierárquicos, 170 assessores de fato e 3.182 “assistentes” para realizar trabalhos de natureza técnica e administrativa (em desacordo com a CF88), todos de livre nomeação pelo Governador: esta é uma fotografia do Governo do Estado de São Paulo.
Confira abaixo a tabela com os cargos em comissão destinados formalmente para exercer atribuições de “Direção e Chefia” (ou Comando) pelo Governo do Estado de São Paulo na Lei Complementar nº 1.080/2008:
Natureza do Cargo | Natureza da Função | Nível Hierárquico | Denominação do Cargo em Comissão | Nível de Escolaridade | Experiência Mínima | Ref. | Salário Inicial | |
Comissão | Direção | 1 | Secretaria | Chefe de Gabinete | Superior | 0 | 18 | R$ 13.872,26 |
Comissão | Direção | 2 | Coordenadoria | Coordenador | Superior | 6 | 17 | R$ 9.492,10 |
Comissão | Direção | 3 | Departamento Técnico | Diretor Técnico III | Superior | 5 | 14 | R$ 6.546,40 |
Comissão | Direção | 4 | Divisão Técnica | Diretor Técnico II | Superior | 4 | 11 | R$ 5.058,15 |
Comissão | Direção | 5 | Serviço Técnico | Diretor Técnico I | Superior | 3 | 9 | R$ 4.029,00 |
Comissão | Direção | 6 | Departamento | Diretor III | Médio | 4 | 10 | R$ 4.771,45 |
Comissão | Direção | 7 | Divisão | Diretor II | Médio | 3 | 8 | R$ 3.899,52 |
Comissão | Direção | 8 | Serviço | Diretor I | Médio | 2 | 6 | R$ 3.061,90 |
Efetivo | Chefia | 9 | Seção Técnica | Chefe II | Médio | 2 | 6 | R$ 3.007,90 |
Efetivo | Chefia | 10 | Seção | Chefe I | Médio | 2 | 2 | R$ 1.710,46 |
Efetivo | Chefia | 11 | Setor Técnico | Encarregado II | Superior | 1 | 5 | R$ 2.768,80 |
Efetivo | Chefia | 12 | Setor | Encarregado I | Médio | 1 | 1 | R$ 1.598,40 |
Comissão | Direção | Diretor Adjunto | Superior | 6 | 17 | R$ 9.492,10 | ||
Comissão | Chefia | Chefe de Cerimonial | Superior | 0 | 17 | R$ 13.102,10 | ||
Comissão | Chefia | Chefe de Gabinete de Autarquia | Superior | 0 | 17 | R$ 9.617,10 | ||
Efetivo | Chefia | Supervisor Técnico III | Superior | 4 | 12 | R$ 5.354,00 | ||
Efetivo | Chefia | Supervisor Técnico II | Superior | 3 | 10 | R$ 4.280,45 | ||
Efetivo | Chefia | Supervisor Técnico I | Superior | 2 | 6 | R$ 2.907,90 | ||
Efetivo | Chefia | Supervisor | Médio | 1 | 3 | R$ 1.991,00 |
O número de secretarias, de níveis hierárquicos ou de cargos de direção e chefia, em si, não são um problema. Tais números deveriam ser proporcionais — ao menos em tese — à amplitude, profundidade e complexidade das atribuições dos órgãos do Estado e de suas políticas públicas. O problema surge quando o tamanho desta cadeia de comando está incompatível com o Plano de Governo eleito nas urnas. Um Plano de Governo ousado demanda uma estrutura de comando robusta, enquanto um Plano de Governo anêmico — orgulhosamente chamado de “enxuto” pelo marketing político — não necessita de estrutura tão portentosa. Se o discurso do Governo prega um “Estado” enxuto, nada mais coerente do que sua estrutura de cargos em comissão ser proporcionalmente enxuta.
Infelizmente, o atual dirigente do Governo do Estado de São Paulo — o Governador Geraldo Alckmin — não é exatamente um governante afeto ao fortalecimento da capacidade do Estado em suas funções de planejamento, gestão e realização de políticas públicas. Prova disso é a baixa conexão entre seu Plano de Governo “Aqui é São Paulo!” (disponível no sítio do TSE) com o PPA 2016-2019 (disponível no sítio da Secretaria de Planejamento e Gestão), acompanhada do desmonte das duas carreiras típicas de Estado criadas em 2008 justamente para profissionalizar o Ciclo de Planejamento e Gestão do Estado de São Paulo: as carreiras de Especialista em Políticas Públicas (EPP) e de Analista em Planejamento, Orçamento e Finanças Públicas (APOFP).
Desde novembro de 2011 sem reposição inflacionária, as carreiras de EPP e de APOFP já acumulam um saldo negativo de 40,6% de inflação não reajustada até agora, sendo as carreiras recordistas em tempo sem reajuste: 4 anos, 10 meses e 20 dias.
4. O Governo do Estado de São Paulo realiza uma política sistemática de arrocho salarial e de negociações no varejo. Desrespeitando sistematicamente a legislação, o governo paulista nunca realizou a “revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices” assegurada na CF88 (Art. 37, inciso X).
Ao invés de realizar a revisão geral anual, o Governo de SP opera no vajero: de tempos em tempos, cada carreira do Estado recebe um reajuste (denominado genericamente “reclassificação de cargos e salários”) num ano diferente do outro e com percentuais distintos. Com isso, o Governador Geraldo Alckmin e seus antecessores têm conseguido manter servidores públicos concursados de diversas carreiras em uma situação de agonia e desespero econômico, permanecendo muitos anos sem reposição inflacionária e sem negociação coletiva. O truque de nunca realizar a revisão geral anual e o abuso desses mecanismos pontuais e esporádicos de reajuste para algumas carreiras, além de pretender dividir as categorias de trabalhadores e ignorar a inflação, demonstra também o desprezo do Governo pela Constituição Federal e pela Constituição Estadual de SP.
Segue abaixo a legislação desrespeitada sistematicamente pelo Governo do Estado de São Paulo:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
X – a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices;
Constituição do Estado de São Paulo:
Artigo 115 – Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:
XI – a revisão geral anual da remuneração dos servidores públicos, sem distinção de índices entre servidores públicos civis e militares, far-se-á sempre na mesma data e por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso;
Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal):
Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências.
Capítulo IV – Da Despesa Pública
Seção I – Da Geração da Despesa
Subseção I – Da Despesa Obrigatória de Caráter Continuado
Art. 17 – Considera-se obrigatória de caráter continuado a despesa corrente derivada de lei, medida provisória ou ato administrativo normativo que fixem para o ente a obrigação legal de sua execução por um período superior a dois exercícios.
§ 1° Os atos que criarem ou aumentarem despesa de que trata o caput deverão ser instruídos com a estimativa prevista no inciso I do art. 16 e demonstrar a origem dos recursos para seu custeio.
§ 6° O disposto no § 1o não se aplica às despesas destinadas ao serviço da dívida nem ao reajustamento de remuneração de pessoal de que trata o inciso X do Art. 37 da Constituição.
Seção II – Das Despesas com Pessoal
Subseção II – Do Controle da Despesa Total com Pessoal
Art. 22 – A verificação do cumprimento dos limites estabelecidos nos arts. 19 e 20 será realizada ao final de cada quadrimestre.
Parágrafo único – Se a despesa total com pessoal exceder a 95% (noventa e cinco por cento) do limite, são vedados ao Poder ou órgão referido no art. 20 que houver incorrido no excesso:
I – concessão de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a qualquer título, salvo os derivados de sentença judicial ou de determinação legal ou contratual, ressalvada a revisão prevista no inciso X do Art. 37 da Constituição;
Dispõe sobre a revisão anual da remuneração dos servidores públicos da administração direta e das autarquias do Estado
Artigo 1º – É fixada em 1° de março de cada ano a data para fins de revisão da remuneração dos servidores públicos da administração direta e das autarquias do Estado, bem como dos Militares do Estado, nos termos do artigo 37, inciso X, da Constituição Federal.
Conclusão: antes que se pretenda dizer que funcionários público “é tudo igual”, vale considerar que o Estado reproduz as mesmas diferenças econômicas e de classe verificadas na sociedade como um todo. Neste artigo tratamos apenas de algumas. Esperamos que a leitura tenha sido edificante e esclarecedora.
São Paulo, 20 de setembro de 2016.
Equipe do Painel das Profissões do Estado de São Paulo, uma iniciativa da Associação dos Especialistas em Políticas Públicas do Estado de São Paulo
profissoes.aeppsp.org.br